Letrux: “Letrux em Noite de Climão”


Letrux: “Letrux em Noite de Climão”

Em seu primeiro álbum de estúdio, Letrux lança luz a uma trajetória tântrica e barroca, misteriosa mas excêntrica, profícua e consciente, imergida nos mares noctâmbulos aportados no cenário metropolitano carioca, atravessando uma romaria confusa rumando à tranquilidade enquanto se defronta com os espíritos natos do passado, durante o ínterim da madrugada. Lançado em 10 de julho de 2017, pela Joia Moderna, o disco contém a colaboração principalmente de Marina Lima. Com 8,5/10 pontos pelo blog “Miojo Indie”, “Letrux em Noite de Climão” recebeu regulares notas da crítica musical, estando especialmente em boas colocações dentre listas de melhores produções musicais nacionais lançadas naquele ano, por exemplo, em segundo lugar pelo portal “A Escotilha”, em décimo pelo “Rolling Stone” e em 14º pelo blog “Tenho Mais Discos que Amigos”, ademais, o disco venceu na categoria “Melhor Disco” na 24ª edição do Prêmio Multishow.

Letrux. foto por Ana Alexandrino; e arte por Mariana Abasolo. disco Letrux em Noite de Climão (Joia Moderna, 2017)

A madrugada é um intervalo de tempo cujo caráter pode até mesmo assombrar, não apenas no sentido de acordar no meio do sono por conta dos típicos pesadelos relembrando cenas saturadas de filmes ou séries de terror ou um episódio quase fatal da vida, mas também com a onipresença forte da solidão empestando o quarto, sabe… aquela sensação chata a respeito da ausência de alguém para preencher a cama, partilhar do frio impregnado nas cobertas e assegurar o travesseiro de que não haverá lágrimas nele àquela noite. Enquanto as horas desdobram tal período, é percebido por Novaes a tentativa dessa onda de sentimentalismo e nostalgia arrasá-la com recordações de seu ex, a procura de eclodir em suas vísceras a agonia e ansiedade, o cenário então passa a ser mais bizarro a cada recaída sua, expandindo o climão e a estranheza até onde vão os limites de vértices e arestas do apartamento, cingindo a mulher com insônia e aflição. Tece-se, portanto, uma jornada ora carnal, ora psicológica, ora sã, ora esquizofrênica, ora real, ora mística, ao longo dos instantes que antecedem a alvorada da Tijuca, bairro ao qual é tão ligada, se esforçando ao máximo para chegar ainda sã e salva ao tão esperado plácido remate dessa novela, loucura, desalento, onde a fossa dança e o gozo dói.

“Noite Estranha, Geral Sentiu”, de Letrux. composta por Letrux. disco Letrux em Noite de Climão (Joia Moderna, 2017). dirigido por Clara Cosentino e Poliana Pieratti.

“5 Years Old” expõe contraditórias versões de uma mesma personagem — em primeiro plano, uma criança muito bem humorada e corajosa, detentora de braveza e esperteza, e em segundo, uma mulher prestes a convidar alguém a um romance, no entanto, com um pé atrás de fazer o suplício — , um paradoxo não tão incomum, na verdade, como se o medo ausente no espírito da criança de cinco anos resolvesse aparecer durante o período de noivado. “Amoruim” é o momento no qual a realidade passa a desfigurar o fabulado acerca de um “amor perfeito”, apesar de existir um par nesse desfecho, os esforços de cada um e o aval em conjunto de estarem juntos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, a situação de ambos é paradoxal, relevando uma certa imparidade. “Coisa Banho de Mar” alude à sensação eufórica de querer fugir dos medos, perdas, desesperanças, que jazem acima da superfície e desejar mergulhar profundamente no mar mais próximo para neutralizar ou erradicar tamanha angústia do presente, procurar uma nova estância, crença, paz, e arrastar para essa romaria o seu amor, seduzi-lo transcendentemente ao oceano como uma sereia.

“Coisa Banho de Mar”, de Letrux. composta por Letrux e Arthur Braganti. disco Letrux em Noite de Climão (Joia Moderna, 2017). dirigido por Letrux e Arthur Braganti.
Eu vou nadar pelada no mar, água nas partes, fugir dos desastres, virar sereia, te sequestrar, morrer com você no fundo do mar.

“Noite Estranha, Geral Sentiu” é o pressentimento simultâneo dos primeiros indícios de saudade e solidão ao longo do anoitecer e as tentativas de se esquivar para fora deste contágio, evitando o choro e o desespero, seja se embebedando, se afogando como pode nos lençóis, saindo às luzes néons etc., uma situação angustiante de estar prestes a enfrentar um vendaval de memórias ruins. “Puro Disfarce” é um baque, e dos fortes, no presente, sucumbe-se ao desespero enquanto se restabelece conexões seguras consigo mesma para sair do fundo do poço aos poucos, permitindo-se desatar seus nós com várias âncoras. “Além de Cavalos” sucede a queda anterior, porém é menos intensa, as fantasias e o otimismo de outrora passam a esmaecer diante da aceitação da perda para ir adiante. “Ninguém Perguntou por Você” recorda levemente esse amor ruim ao longo das brechas do cotidiano nas quais a lembrança do nome, da aparência, dos costumes, da pessoa em questão são evocados, mesmo despercebidamente, entretanto, sem sucumbir à melancolia.

Tantas vezes tantras e tamanhas, me explica qual vai ser sem artimanhas. Se essa fossa dança e o gozo dói… meu carma se transforma num herói. Carapuça serve até dormindo… a vida não é “caô”, vou resumindo. É que pra que você eu tiro o chapéu, além da roupa toda, que escarcéu. E dessa vez sem truques vou querer algo que me diga qual vai ser. E, se não vem em sonho, vou pagar remédio, terapia e naufragar. Nasci com o cu pra lua e o pé no mar — remédio, terapia e naufragar. Parece que é “bad” mas vou adorar — remédio, terapia e naufragar.
Letrux. foto por Ana Alexandrino. 2017

“Vai Render” ambienta os últimos instantes do poente carioca, através dos quais a noite contracena fervorosa e chamativamente, cingindo o público pelas ruas e fazendo-os adentrarem em sua vibração; a princípio, chama-se atenção um mantra valente utilizado pela própria Letrux. “Flerte Revival” se dedica a um aliciamento irreal, impetuoso e transcendedor de limites direcionada à ela, designados por um garoto, cujos toques eriçam, perfil atrai e palavras seduzem, mas contra ao qual lhe fora avisado por várias pessoas ao seu redor a respeito do perigo disso, detentor de provocações que, porventura, possam monopolizar suas emoções e eriçá-la toda. “Que Estrago” hospeda um alucinante teor erótico, sua letra difere da anterior pela excitação aqui discutida envolver a paixonite visceral por uma garota. “Hypnotized” tangencia o climão da melancolia para algo mais sensual e cabalístico, a hipnose, seja do garoto (“Flerte Revival”) ou da garota (“Que Estrago”), se transforma em algo mais obscuro e manipulador.

“Hypnotized”, de Letrux. composta por Letrux e Bernardo Ramalho. disco Letrux em Noite de Climão (Joia Moderna, 2017).
Eu só queria dormir e acabei me apaixonando. Eu só queria me apaixonar e acabei…

Destaques: “Vai Render” começa bem assentado à monarquia tântrica deste manifesto de sentimentos noctâmbulos, dirigindo bem a dinâmica do sangue pelas veias do projeto. “Ninguém Perguntou por Você” balanceia uma letra um tanto triste com um ritmo mais dançante e atenuado, diferente de “Amoruim” e “5 Years Old, ambas com um caráter mais melodramático percebido tanto na sonoridade como no timbre da voz de Novaes. “Coisa Banho de Mar” e “Noite Estranha, Geral Sentiu” têm um parentesco musical em comum, isto é, flertam com uma musicalidade mais oitentista e noventista, como aquelas quase sempre tocadas à meia-noite em rádios, abraçando o tom vocal entre os compassos do synth, guitarra, drums… “Que Estrago” desperta a atenção pelo conteúdo mais frenético e ousado, misturando a paixão tola e juvenil a um tesão sem limites, equilibrando bem o teor sexual e transformando o todo em uma canção até gostosinha, quase como “Flerte Revival”, que se utiliza do teor assombroso e cortês ao invés de algo mais erótico, e se casa com “Hypnotized”, esta ambientando uma noite extática e misteriosa, durante a qual Letrux verseja calmamente enquanto os sintetizadores fúnebres bailam com as ritualísticas batidas do batá.

Estou numa fase vermelha, estou amando um ruivo, estou sangrando, estou passional, estou “vermelhona”. Lembro ano passado, durante o início do golpe, que sair de vermelho era um statement forte, o que é uma pena porque eu também amo sair de verde ou amarelo, mas, olha que louco, eu dei um tempo. E comecei a comprar muita roupa vermelha.

— Letrux. VICE (2017)

Apesar dos dramas de sempre tão chatos como comichões, da falta de sono depois de fechar os olhos várias vezes e da carência em algum ponto que resolvem aparecer antes do amanhecer e destruir uma bela noite de descanso e prazer, esta noitada de intensidade, saudade e mistério acabou se tornando um trabalho bastante versátil e profícuo, só para começar a voz delgada de Novaes consegue se agregar sem dificuldade alguma aos médios compassos untando bem as canções, desde os timbres e gemidos apoiando o lado cabalístico do disco às recaídas leves para enaltecer a melancolia. Os poucos matizes de gêneros, batidas, camadas, e um custo econômico e breve na construção da plataforma que sustenta o conceito, a coesão e a coerência não chegam a decepcionar o ouvinte. Muito pelo contrário, Letrux em Noite de Climão tanto esclarece direito o manifesto “noctâmbulo” de sua autora como é um belo início à sua carreira solo, divagando entre o acústico e o mais sintético, fermentando um mix alternativo no qual os ingredientes são o rock, o indie e o synth. Enfim, uma madrugada que abandona a austeridade mas fantasia pouco, se permite quase nada à lassidão, afinal, não há descanso aos ímpios: a balada cosmopolitana e flexível de Letrux andarilha rumo ao amanhecer, à espera do alarme tocar para seu itinerário começar, abraça os pesadelos e as tristezas a fim de compactuar e dançarem ao ritmo da sua negação de sucumbir às ausências, ao passado, às aflições, obtendo assim uma noite de fervor, loucuras, altos e baixos, feitiços e, principalmente, de climão.

“Flerte Revival”, de Letrux. composta por Letrux. disco Letrux em Noite de Climão (Joia Moderna, 2017). dirigido por Letrux.